Fernanda Valadares
Fernanda Valadares
Planejamento Familiar

A renúncia sucessória dos cônjuges

O pacto antenupcial pode conter cláusulas que renunciam ao direito concorrencial na herança, desde que, no entanto, os envolvidos sejam alertados quanto à possível contestação da eficácia disso no futuro.

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15 de agosto de 2023
A renúncia sucessória dos cônjuges
Foto: Divulgação

Consideremos a seguinte narrativa: Maria, uma senhora de cinquenta e seis anos de idade, encontra-se divorciada. Ao longo dos anos, ela construiu um notável patrimônio, consubstanciado tanto em sua trajetória laboral como na partilha de bens resultante de seu divórcio anterior. Em uma etapa posterior, Maria experimenta uma renovação de sentimentos e decide ingressar novamente em uma relação afetiva, buscando residir com o parceiro, João. Este desejo de compartilhar experiências e companhia mútua surge em um momento de suas vidas em que ambos desfrutam da aposentadoria.

Neste enredo, tanto Maria quanto João possuem propriedades individuais consolidadas e não têm a intenção de adquirir bens adicionais. Ambos, previamente à sua união, já haviam alcançado suas aquisições de maneira independente e são avessos a quaisquer perspectivas de divisão destes ativos no futuro. A situação se torna mais complexa devido à existência de filhos provenientes de relações passadas: Maria é mãe de um filho oriundo de seu casamento anterior, enquanto João também é progenitor de um descendente.

Consequentemente, caso Maria e João optem por formalizar sua relação através de uma união estável ou casamento, o regime legal que regerá a relação de ambos será, sem a celebração de um pacto antenupcial, o da comunhão parcial de bens. Todavia, no âmbito jurídico, eles possuem a prerrogativa de eleger, por meio de um pacto antenupcial, um regime de bens alternativo que diverge da comunhão parcial de bens. Em resumo, e mais usual, as possibilidades englobam desde uma comunhão universal de bens, a comunhão parcial com cláusulas específicas até a total separação de bens.

Entretanto, independentemente do regime de bens escolhido, a lei determina que, em situações de falecimento de um dos cônjuges, o parceiro sobrevivente tem direito à herança, independentemente do caráter individual dos bens, salvo em casos de separação obrigatória de bens. Em outras palavras, tanto os bens adquiridos antes do matrimônio como aqueles nos quais o cônjuge sobrevivente não esteve envolvido na aquisição são sujeitos a esta divisão após o falecimento. Este panorama gera um dilema para Maria e João, que anseiam por assegurar que seus descendentes sejam os únicos beneficiários de seus respectivos patrimônios.

Em face desta circunstância, emerge uma questão delicada que carece de reformas no âmbito legislativo. Atualmente, e em consonância com o entendimento emanado dos tribunais, Maria e João não estão obrigados à separação obrigatória por força da lei, dado o contexto narrado. Portanto, esse regime de bens, não seria uma opção. Eles podem, no máximo, em conformidade com o regime de separação total de bens, determinar que a partilha de ativos adquiridos individualmente seja evitada no caso de divórcio. Não obstante, nesses casos, em situações de óbito, a legislação atribui ao parceiro sobrevivente a qualidade de herdeiro, independentemente de sua participação na constituição do patrimônio em questão.

Diante desta realidade, é inegável que a atual configuração legal tem gerado insatisfação considerável entre os casais, notadamente nos tempos atuais. O contexto contemporâneo é marcado pela conquista da independência financeira tanto por homens quanto por mulheres, culminando na aquisição de bens através de esforços individuais. Nesse cenário, a perspectiva de legar estes bens a herdeiros que não são descendentes ou ascendentes diretos, que não contribuíram para sua aquisição e não compartilham o vínculo de construção patrimonial é motivo de apreensão.

A solução, no momento, reside na disposição do casal expressa no pacto antenupcial, que reflete sua intenção de evitar a partilha de bens em caso de divórcio, assim como a eventual concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes e ascendentes na herança. No cenário do Rio de Janeiro, o Código de Normas, no artigo 390, acolhe esta possibilidade, permitindo que o pacto antenupcial contenha cláusulas que renunciam ao direito concorrencial na herança, desde que, no entanto, os envolvidos sejam alertados quanto à possível contestação da eficácia desta cláusula em momento do futuro.

Consequentemente, observamos que certos cartórios estão admitindo a inclusão das aspirações do casal no tocante à sucessão patrimonial no pacto antenupcial, notadamente no que diz respeito à concorrência do cônjuge com os descendentes ou ascendentes. A doutrina jurídica, de maneira predominante, também tende a reconhecer a possibilidade de renúncia ao direito concorrencial do cônjuge sobrevivente. A perspectiva de um futuro cenário legislativo que mais adequadamente reflita o desejo de que a herança siga o caminho de seu constituinte parece inevitável. Não obstante, até que este entendimento evolua para o status de lei, o falecimento de um cônjuge no presente, mesmo quando submetido ao regime de separação total de bens, não resulta em uma solução clara, já que os tribunais atualmente tendem a acatar a disposição legal, na qual o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes e ascendentes na partilha da herança.

Este cenário lança um chamado à reflexão para os casais que desejam estabelecer seus desejos quanto à herança. Afinal, o futuro permanece incerto e a alteração legal pode ocorrer de modo imprevisto, proporcionando a oportunidade de reconhecimento e efetivação da vontade das partes em relação à sucessão patrimonial. Como testemunhas do desenvolvimento jurídico, aguardemos o desdobramento desta questão.