Fernanda Valadares
Fernanda Valadares
Planejamento Familiar

Abandono de lar: mitos, realidade e implicações legais na atualidade

Um dos mitos mais persistentes no imaginário popular é a ideia de que o cônjuge, especialmente a mulher, que abandona o lar perderia automaticamente seus direitos sobre os bens do casal.

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10 de setembro de 2024
Abandono de lar: mitos, realidade e implicações legais na atualidade
Foto: Divulgação

O abandono de lar é um tema que gerou e ainda gera muitas dúvidas entre casais em processo de separação ou divórcio. No passado, sair de casa era frequentemente associado à perda de direitos, tanto sobre bens como em relação à guarda dos filhos, o que acabou criando uma série de mitos em torno do tema, abandono do lar. Contudo, as transformações no campo do direito de família, especialmente com a Emenda Constitucional nº 66 de 2010 e a Lei nº 12.424 de 2011, redefiniram o que de fato constitui o abandono de lar e quais são as suas consequências legais. Neste artigo, vamos desmistificar os equívocos populares e discutir o que realmente configura abandono de lar nos dias de hoje, e suas implicações.

Um dos mitos mais persistentes no imaginário popular é a ideia de que o cônjuge, especialmente a mulher, que abandona o lar perderia automaticamente seus direitos sobre os bens do casal e, em muitos casos, a guarda dos filhos. Esse mito foi alimentado por antigas práticas jurídicas em que a culpa pelo fim do relacionamento tinha um peso significativo. No entanto, com as mudanças legislativas, o cenário atual é bem diferente.

A Emenda Constitucional nº 66/2010 simplificou o processo de divórcio ao eliminar a necessidade de comprovação de culpa para o rompimento da relação. Dessa forma, não há mais qualquer sanção direta para aquele que sai de casa, desde que a saída seja acompanhada da manifestação clara do desejo de dissolver o vínculo conjugal. Essa mudança foi essencial para proteger os direitos das partes, principalmente em situações onde a convivência se torna insustentável, como nos casos de violência doméstica.

Hoje, a culpa pelo término do casamento não interfere na partilha dos bens ou na guarda dos filhos, salvo em circunstâncias excepcionais. A mulher que deixa o lar, por exemplo, não perde automaticamente seus direitos sobre os bens comuns nem a guarda dos filhos, como muitos acreditam. Na realidade, o que se discute judicialmente é a melhor forma de proteger o interesse das partes envolvidas, com foco especial nos filhos, caso existam.

O abandono de lar, no contexto jurídico atual, está diretamente relacionado à ideia de usucapião familiar, um conceito introduzido pela Lei nº 12.424 de 2011. O abandono de lar não se refere simplesmente à saída de um dos cônjuges da residência conjugal, mas à ausência prolongada e ao descaso em relação ao imóvel e à família.

Para que seja caracterizado o abandono de lar e o consequente pedido de usucapião familiar, alguns requisitos devem ser preenchidos: o imóvel deve ser urbano, ter até 250m², e o cônjuge que permanece no imóvel não pode possuir outra propriedade. Além disso, o abandono deve ser contínuo por dois anos, e não pode haver oposição por parte do cônjuge que deixou a residência. Somente nessas condições, o cônjuge que ficou pode requerer o direito à usucapião e, assim, tornar-se proprietário exclusivo do imóvel.

Esses critérios mostram que o abandono de lar para fins de usucapião do imóvel não é algo automático. Deixar o imóvel por um período curto, sem intenção de abandoná-lo permanentemente, não caracteriza o abandono. Da mesma forma, se o cônjuge que saiu de casa mantiver contato regular com a família, demonstrando interesse nos filhos e nos bens, o abandono de lar não pode ser configurado. Assim, o simples fato de sair de casa para evitar um ambiente tóxico ou abusivo, por exemplo, não pode ser interpretado como abandono no sentido jurídico.

Uma das conexões menos óbvias, mas extremamente relevante, entre abandono de lar e a realidade jurídica atual é a relação com a violência doméstica. Muitas mulheres permanecem em relações abusivas com medo de que, ao deixar o lar, perderão direitos sobre os bens do casal ou a guarda dos filhos. Esse é um dos principais mitos que precisa ser desconstruído.

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) oferece mecanismos de proteção às mulheres que sofrem violência doméstica, garantindo-lhes o direito de deixar o lar sem perder seus direitos. Nesses casos, a saída da mulher do ambiente conjugal é uma necessidade para preservar sua integridade física e psicológica. Não há qualquer fundamento legal para penalizar a vítima, seja pela saída do lar, seja pela proteção de seus direitos patrimoniais. Essa legislação demonstra como o direito contemporâneo está cada vez mais voltado para a proteção da dignidade e da segurança das partes envolvidas, especialmente em contextos de vulnerabilidade.

Outro aspecto importante é a distinção entre o abandono de lar e o regime de bens adotado no casamento. A partilha dos bens segue as regras estabelecidas no regime matrimonial escolhido, seja comunhão parcial, comunhão universal ou separação total de bens. O abandono de lar pode influenciar apenas na questão do imóvel usado como residência familiar, mas não afeta a partilha de outros bens, como veículos, investimentos ou propriedades adicionais.

Por exemplo, no regime de comunhão parcial de bens, todos os bens adquiridos durante o casamento serão divididos igualmente entre os cônjuges, independentemente de quem saiu de casa. Isso significa que, mesmo que um dos cônjuges tenha deixado o lar por qualquer motivo, isso não implica a perda de sua parte nos bens adquiridos durante a união. Apenas em casos muito específicos, como o da usucapião familiar, é que o imóvel pode ser transferido integralmente para o cônjuge que permaneceu nele.

Dito isso, o conceito de abandono de lar evoluiu significativamente nas últimas décadas. A antiga noção de que sair de casa implicava em perda automática de direitos não se sustenta à luz das legislações atuais. A sociedade, no entanto, ainda precisa desmistificar muitos dos equívocos sobre o tema.

A partir das mudanças legislativas e das jurisprudências predominantes, fica claro que o abandono de lar não é uma questão simples de ausência física, mas envolve uma série de fatores como a intenção de não retornar, o descaso com a família e a propriedade, além da ausência de oposição do cônjuge que permaneceu na residência.

Diante disso, é fundamental que casais em processo de separação ou divórcio busquem orientação jurídica adequada para garantir que seus direitos sejam preservados e que os mitos em torno do abandono de lar não continuem a prejudicar aqueles que estão apenas tentando se proteger ou reconstruir suas vidas.