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Procuradores veem ‘inversão de lógica’ e inconstitucionalidade

A Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal elencou inconstitucionalidades no projeto de lei que veda delações premiadas de presos e criminaliza a divulgação da colaboração.

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14 de junho de 2024
Vinicius Palermo
Procuradores veem ‘inversão de lógica’ e inconstitucionalidade
A integrante da executiva-nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Tânia Maria de Oliveira

A Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal elencou inconstitucionalidades no projeto de lei que veda delações premiadas de presos e criminaliza a divulgação da colaboração. Segundo a Procuradoria, a proposta viola o princípio da ampla defesa, assim como os princípios da isonomia e da autonomia da vontade, além de afrontar uma série de obrigações internacionais assumidas pelo País.

Assim, os procuradores indicam que o projeto sob discussão dos parlamentares, sob o argumento de proteger o acusado, pode prejudicar o mesmo quando ele ‘estiver decidido a colaborar, de maneira voluntária e devidamente informada’.

“Haveria uma restrição inconstitucional dessa alternativa para o réu preso, sem uma justificativa plausível, a não ser supostamente protegê-lo, mesmo quando essa proteção contrarie o melhor interesse de sua defesa! Esse raciocínio acaba por prejudicar o investigado, sob o fundamento de protegê-lo, em uma inversão do fundamento dos direitos fundamentais. Realmente, seria um contrassenso que garantias estabelecidas em nome do imputado – o caráter voluntário da colaboração – seja utilizada para retirar-lhe direitos. É uma verdadeira inversão da lógica dos direitos humanos”, registra o texto.

A nota técnica foi divulgada na quarta-feira, 12, mesmo dia em que a Câmara dos Deputados aprovou acelerar a tramitação do projeto de lei. A proposição tem como justificativa a premissa de que a mudança asseguraria a voluntariedade da delação, evitando o uso de prisões como ‘instrumento psicológico de pressão’.

A avaliação da 5CCR, no entanto, é a de que o PL ‘vai exatamente no sentido oposto’ do que pretende: “Ao proibir a celebração do acordo de colaboração com pessoas presas, a lei restringe o direito de todo cidadão à ampla defesa e viola uma séria de garantias do investigado”

Segundo a Procuradoria, o projeto não serve como ‘elemento inibidor da decretação de prisões provisórias indevidas’ e tampouco vai contribuir para assegurar a voluntariedade do colaborador. O MPF lembra que a delação é uma estratégia de defesa, ‘claramente uma escolha racional, à luz de um cálculo utilitarista de custos e benefícios’.

“O colaborador, esteja preso cautelarmente ou em liberdade, também se enquadra como acusado em um contexto delitivo que tenha participado, e, desse modo, deve ter resguardado seus direitos e garantias fundamentais, fazendo jus, por conseguinte, a previsões normativas no ordenamento que lhe sejam favoráveis, em razão da prevalência do direito”, registra a nota técnica.

Os procuradores também argumentam que, caso o PL seja aprovado, é ‘imprescindível’ que fique expresso que a nova lei não alcançaria delações fechadas e homologadas antes da publicação da norma, ‘ sob pena de violação do ato jurídico perfeito’. Assim a lei não valeria, por exemplo, para a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens que implicou o ex-presidente Jair Bolsonaro em uma série de investigações em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

Com relação à proposta de criminalização do vazamento do conteúdo das delações, o MPF defende uma melhor delimitação da proposta sob debate na Câmara dos Deputados. A Procuradoria lembrou que, a lei de organizações criminosas veda expressamente a publicização de delações antes do recebimento da denúncia ou da queixa-crime.

Segundo a Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal levantamento do sigilo da colaboração, tanto para a colheita de elementos de corroboração dos depoimentos como em razão do princípio da publicidade. A sugestão é para que o texto do PL indique a criminalização em caso de depoimento sob sigilo

“A investigação e o processo penal, em regra, devem ser públicos É direito da sociedade ter ciência do andamento da persecução penal, como mecanismo de controle de sua eficiência. É certo que, em determinados casos excepcionais, será possível a decretação do sigilo da investigação, seja para a defesa da intimidade ou do interesse social. No entanto, nestes casos, porém, o sigilo deverá ser o mínimo necessário. Isto porque a publicidade da persecução dos ilícitos não é apenas um mecanismo de controle da efetividade da persecução por parte da sociedade, mas também um meio de controle da legalidade e da justiça na atuação dos órgãos de persecução”, frisa o documento.

O projeto de lei (PL) que proíbe que pessoas presas façam delação premiada, se aprovado, vai prejudicar as investigações policiais, podendo favorecer as organizações criminosas, segundo avaliação de especialistas.

O policial federal e doutorando na área de segurança pública, Roberto Uchôa, avalia que a delação premiada é fundamental para desvendar o funcionamento de uma organização criminosa.

“Em determinadas situações, para conhecer como funciona uma organização criminosa, você precisa que membros dessa organização te contem como ela funciona. Isso poupa recursos do Estado, poupa tempo de trabalho. Isso facilita, inclusive, a descoberta de lavagem de dinheiro e repatriamento de capitais. São muitos benefícios”, destacou o membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Segundo Uchôa, dificilmente a polícia chegaria aos supostos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Torres sem a delação do policial militar Ronnie Lessa, que já estava preso.

“Sem a delação do Lessa não teria como descobrir o envolvimento do ex-chefe da Polícia Civil no caso. São situações em que a delação premiada é importante justamente por permitir que você tome conhecimento da dimensão da organização como um todo”, completou.

Com a urgência aprovada, o mérito do texto pode ser pautado a qualquer momento no plenário, sem necessidade de passar por análise nas comissões. Apesar de a votação ter sido simbólica, lideranças do PT, PCdoB, PSB, PSOL, Rede, Novo e alguns parlamentares se manifestaram contra a aprovação dessa urgência.

A integrante da executiva-nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Tânia Maria de Oliveira, também avalia que o projeto prejudica investigações. Ela lembra que o tema foi inicialmente proposto em 2016 pelo então deputado Wadih Damous (PT-RJ) como uma resposta aos supostos abusos da operação Lava Jato.

“A delação passou a ser usada a partir de 2014 pela Operação Lava Jato de forma completamente abusiva e ilegal. Havia a regra na Lava Jato de prender para delatar”, destacou.

Porém, a especialista alerta que brechas na lei que permitiam os abusos do uso da delação premiada foram sanadas pela Lei 13.964, aprovada em 2019 e conhecida como Pacote Anti-Crime. A legislação de 2019 proibiu delações sobre temas que não tivessem relação com a investigação, e vetou delações de crimes que o réu não tenha participado.

“Hoje, para fazer delação, a pessoa tem que ter participado, está lá na Lei 13.964. Outra coisa é que todas as etapas da delação premiada são obrigatoriamente gravadas e a pessoa que delata fica com a cópia da delação”, argumenta.

Para a jurista, o projeto em tramitação hoje na Câmara deve ter interesses para além dos possíveis efeitos jurídicos do projeto. “A gente tem muitas investigações em curso, muitas pessoas sendo ainda procuradas, que estão foragidas. Então, talvez eles estejam de olho nisso, de impedir novas delações de pessoas presas”.

Ao defender a matéria no plenário, um dos autores do pedido de urgência, o deputado federal Luciano Amaral (PV-AL), argumentou que é preciso aprimorar a lei de colaboração premiada no Brasil.

“Temos que impedir que colaborações de réus presos sejam feitas sob pressão, praticamente sob tortura. E também defendo que os terceiros imputados, os terceiros implicados naquele momento, tenham condição de impugnar o acordo de colaboração e a decisão homologatória”, afirmou.

Em nota divulgada à imprensa, Luciano afirma que a medida tem “natureza eminentemente técnica” e que não serve para atingir investigações ou processos específicos. “Sustentar coisa semelhante é mesmo criar uma falsa narrativa com o espúrio objetivo de impedir que o parlamento brasileiro finalmente promova os aprimoramentos que há muito a academia tem reclamado”, completou.

Além do deputado Amaral, o pedido de urgência foi assinado pelo líder do PL, Altineu Côrtes (RJ); pelo líder do Solidariedade, Aureo Ribeiro (RJ); pelo líder do União Brasil, Elmar Nascimento (BA); pelo líder do Podemos, Romero Rodrigues (PB); e pelo líder do MDB, Isnaldo Bulhões Jr (AL). O fato de cinco lideranças assinarem o pedido de urgência revela o importante apoio que o texto tem na Casa.

A dúvida se a aprovação do projeto teria o poder de retroagir para beneficiar os investigados acusados por delação de réu preso, é fruto de uma confusão que as pessoas fazem, segundo explicou a especialista da ABJD, Tânia Maria de Oliveira.

“As pessoas fazem confusão. A lei penal retroage para beneficiar o réu. Mas, nesse caso, não se trata de lei penal, é lei processual. Então, as alterações processuais, elas são usadas a partir de quando a lei é sancionada”, explica.

A jurista acrescentou ainda que os abusos usados como argumento para acabar com a delação de pessoa presa, como o uso da prisão para forçar delação, é um desvio da lei. “Você não pode usar prisão cautelar para forjar a delação. Isso é um desvio da lei, não é a lei. Isso é ilegal”.

O especialista em segurança pública Roberto Uchôa acrescenta que, nesses casos de abusos, deve-se punir o servidor que violou a lei. “Quem determinou essa prisão [forjada para conseguir a delação] deve ser punido. Mas você não vai desmontar o instituto da delação por isso”.

A jurista Tânia de Oliveira ressalta que o projeto de lei pode ser considerado inconstitucional por impedir a pessoa presa de acessar o benefício da delação para reduzir sua pena. “A pessoa tem o direito, se ela quiser, de acessar o recurso de fazer a delação, como direito ele tem”, sustenta Tânia.