A polícia abriu fogo e matou 69 pessoas em Sharpeville, na África do Sul. Foi no dia 21 de abril de 1960, em uma passeata contra as leis que limitavam os direitos de ir e vir das pessoas negras durante o regime segregacionista do apartheid.
Quase dez anos mais tarde, a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu a data como Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial. Mas, em 2023, as mortes causadas pela polícia ainda são uma das formas mais violentas do racismo em diversas partes do mundo.
No estado de São Paulo, as polícias mataram mais de uma pessoa por dia ao longo de 2022, totalizando 414 casos, segundo balanço da Secretaria de Segurança Pública. Dessas, 62,5% foram identificadas como pessoas negras. Em janeiro deste ano, foram 37 mortes classificadas como “intervenção policial”.
“Historicamente, há uma consolidação de uma certa permissividade do abuso das polícias pelo Poder Público”, explica o pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Dennis Pacheco. Para ele, um dos elementos que não desautoriza a violência das polícias, que se reflete no alto número de mortes, é a falta de condenações, mesmo em casos com fortes evidências de ilegalidade.
“É comum que os promotores arquivem denúncia de abuso por uso da força das polícias nos casos em que policiais matam pessoas. Independente do depoimento das testemunhas, do que se tem de provas construídas ao longo do inquérito, sejam as provas de balística, da cena do crime”, acrescenta.
Uma violência que, segundo o pesquisador, a partir do racismo que contamina toda a sociedade brasileira, acaba sendo direcionada às populações negras. “Está nessa forma de entender o negro como um possível ladrão, como um possível perpetrador de uma violência, que é algo que está muito mais disseminado na sociedade do que uma perspectiva que seja da polícia”, destaca.
Para a assessora de articulação política da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, Juliana Borges, existe um fenômeno mundial de criminalização de populações. “Um avanço dessa ideia que o combate ao crime vai garantir bem-estar social. Quando é o contrário, bem-estar social vai ser garantido com mais direitos”, diz.
Por isso que a morte, em maio de 2020, de um homem negro sufocado por policiais nos Estados Unidos encontrou, segundo Juliana, ecos em diversas partes do mundo. “A questão do George Floyd não impactou somente a gente aqui no Brasil. Se a gente for pensar naquele mesmo período, a gente teve manifestações contra a violência policial racial na França também”, exemplifica.
O caso desencadeou a criação do movimento Black Lives Matter – Vidas Negras Importam, com diversos protestos nos Estados Unidos, que acabaram chegando também em outros países que enfrentam problemática semelhante.
Na França, as manifestações relembraram o caso Adama Traoré, um jovem negro que morreu após ter sido preso em 2016. À época, o caso também provocou indignação e diversos protestos.
“Naquele mesmo período da morte de Floyd, a gente também teve manifestações em alguns países africanos questionando a violência policial”, acrescenta Juliana, ao lembrar dos atos na Nigéria que tinham como alvo a brutalidade do Sars (esquadrão especial antirroubo). Segundo a organização não governamental (ONG) Anistia Internacional, em 20 de outubro de 2020, a polícia e o exército nigerianos mataram 12 pessoas que participavam dos protestos.
No Peru, a Anistia Internacional também acusa o Exército e Polícia Nacional de, em dezembro de 2022, usar força desproporcional para reprimir protestos em áreas com população predominantemente indígena. De acordo com a ONG, ao menos 11 pessoas foram mortas durante a repressão aos atos.
O elo em comum em relação às populações que sofrem com a violência policial é, segundo Juliana, pertencer a grupos discriminados e criminalizados por raça, origem ou etnia.
“Mesmo o racismo sendo modulado nessas sociedades, incidindo de forma diferente, operando de maneira diversa, o que a gente tem é que indivíduos negros ou que são racializados – nos Estados Unidos a gente pode avançar para a discussão da comunidade árabe e dos imigrantes latinos – são essas as populações consideradas perigosas e que precisam ser combatidas”, detalha.
O enfrentamento do problema da violência policial deve ser feito, na visão da especialista, mudando a forma de atuação dessas corporações, trazendo o foco para prevenção e garantia de direitos.
“O mais importante é discutir o combate ao racismo institucional, como a gente faz para construir mecanismos de controle social, controle do uso da força, e formação desses policias que garantam maior segurança para a população e também desses policiais enquanto estão exercendo essa atividade”, diz.
Essas mudanças são possíveis, na avaliação de Dennis Pacheco, a partir da pressão de grupos da sociedade civil, especialmente os impactados por essa violência. “Pressão principalmente dos movimentos sociais. Dos acadêmicos e pesquisadores, como eu. Pressão que sempre existiu. As mães de pessoas assassinadas pela polícia sempre se posicionaram, buscaram ocupar os espaços decisórios para prevenir violências como aquelas as quais os filhos delas foram submetidos acontecessem novamente”, enfatiza.
Foi esse contexto que, segundo o pesquisador, ajudou a promover mudanças institucionais nas polícias de São Paulo, o que tem reduzido a letalidade policial, como as câmeras nos uniformes que vêm sendo implantadas nos últimos anos. “A implementação das câmeras faz parte de um conjunto de medidas políticas e administrativas que é muito maior da mera ferramenta tecnológica”, ressalta.