A história do Brasil é permeada por episódios de deliberada violação aos Direitos Fundamentais. Em seus primeiros séculos de existência, o país vivenciou a escravidão indígena na extração do pau-brasil e a escravidão africana na extração do ouro e na cultura da cana de açúcar.
Em síntese, a escravidão em tais termos teve fim em 1888, com a Lei Áurea. Entretanto, é possível observar novas modalidades, também conhecidas como “trabalho análogo à escravidão”, que em muitos casos pode configurar uma situação mais precária do que ocorria no trabalho escravo dos séculos passados.
O Código Penal brasileiro tipifica o crime em seu artigo 149, caracterizando como submeter alguém a trabalhos forçados/jornada exaustiva, condições degradantes ou restrição de locomoção (requisitos não cumulativos).
Nesse contexto, a escravidão contemporânea ocorre no seguimento de falsas promessas de oportunidades, recrutamentos para outras cidades e até países diferentes, imposição de dívidas, dentre outros, que, quando descorbertos pelo incessante esforço do Ministério Público do Trabalho, ganham repercussão na mídia.
O Ministério Público do Trabalho atua na fiscalização e no combate de tais práticas, bem como, faz o papel do Estado na celebração de Termo de Ajustamento de Conduta, também em momento pré-processual.
O combate ao trabalho escravo é objeto da normativa internacional de direitos humanos (Convenção de Genebra de 1956), sendo considerado princípio fundamental do trabalho (Declaração da OIT de 1998), de modo que as Convenções 29 e 105 da OIT sobre o tema são “core obligations”. Isso significa dizer que mesmo aqueles países que não ratificaram tais Convenções devem obediência a elas, tamanha a importância dos direitos ali defendidos.
Nesse contexto, destaca-se a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão em cadeias produtivas, entendidas como modelo de produção fragmentado em etapas designadas a vários produtores contratados por uma empresa líder do processo, responsável pela marca e comercialização do produto.
A existência de trabalho escravo, em regra, é observada nas pequenas e médias empresas intermediárias da cadeia. Porém, é possível a responsabilização jurídica da empresa que está no topo da cadeia, que detém o poder econômico dominante, com fundamento na Teoria do Avestruz ou da Cegueira Deliberada.
Tal teoria, oriunda do Direito Penal, considera igualmente culpado aquele que, deliberadamente, coloca-se em situação de desconhecimento ou ignorância dos fatos, com o intuito de se eximir da obrigação de evitar o ilícito. Isso porque a função social da empresa e do contrato assim como o dever de boa-fé anexo às contratações impõem o monitoramento do respeito aos direitos humanos ao longo da cadeia como um dever de diligência.
Compreende-se que as empresas beneficiadas com o produto da escravidão contemporânea, de forma direta, possuem plenas condições de fiscalizar os demais produtores da cadeia mediante adoção de política interna para identificação, prevenção e controle de riscos, exigindo adequação à lei como condição para contratações (“compliance”). São exemplos de medidas a prévia seleção de empresas idôneas, a verificação da proporcionalidade do preço do serviço/produto, a exigência de documentos periódicos que atestem a regularidade fiscal e trabalhista, e o constante monitoramento ambiental das condições de trabalho, inclusive dos locais de alojamento dos obreiros.
O descumprimento enseja responsabilidade por ato ilícito decorrente de omissão ou abuso de direito, de forma subjetiva ou objetiva. Além disso, a inclusão da empresa na Lista Suja do Ministério do Trabalho também resulta na sua responsabilidade social por meio da proibição de obter financiamento do BNDES, possibilidade de suspensão de sua inscrição, restrição de contratos nacionais e internacionais e até mesmo a possibilidade de expropriação da propriedade.