Horas antes de comparecer à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), João Pedro Stédile, seu mais conhecido líder, preferiu tratar em sua conta no Twitter da política de Joe Biden para a Ucrânia, das ações do presidente colombiano Gustavo Petro para a Amazônia, das mortes de adolescentes negros em comunidades carentes do Rio e do suposto esquema de venda de joias da Presidência da República durante o governo de Jair Bolsonaro.
O silêncio de Stédile nas redes sociais às vésperas do depoimento foi rompido por uma entrevista ao jornal Brasil de Fato, na qual acusou os deputados da “extrema direita” de transformar a CPI “em um circo com todo tipo de estripulias e agressões”, no qual os parlamentares “abusam, deixam de ter posturas civilizatórias e ofendem, para ver se as pessoas reagem de forma intempestiva”. E lançou um desafio aos membros da CPI: “Eu estou preparado, cinco ou sete horas são normais para nós; nossos cursos de formação duram dias, alguns duram semanas. Tem curso que dura um mês. Não será um problema.”
O homem que empareda governos com invasões de terras pelo País afora em defesa de uma política social – a reforma agrária – que seus críticos dizem ser coisa ultrapassada, cara e fundamentada em uma ideologia atrasada, gabou-se do fato que esta é a terceira CPI que enfrenta. “Nós não temos nada a perder.” Seu depoimento deve ser o último da comissão antes de o relator, o deputado Ricardo Salles (PL-SP) apresentar suas conclusões. O advogado de Stédile, o criminalista Roberto Podval, disse que o depoimento do sem-terra “será esclarecedor”.
Quando recebeu a convocação para depor há quase um mês, o líder do MST disse: “Eu irei depor . Não cometi crime, não tenho medo. Agora, a CPI não é contra o MST e sim contra o governo Lula, contra a esquerda”. Foi em uma entrevista à revista Carta Capital, que esse economista que já disse ter um exército para colocar na rua em defesa do governo de Dilma Rousseff, em 2015, anunciou sua estratégia de defesa. Ela passa por transformar seu depoimento em um embate entre a direita e a esquerda, aproveitando a polarização do País para obter o apoio da bancada governista na CPI.
Os adversários de Stédile, como o ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) Xico Graziano, defendem que ele seja questionado sobre as relações do movimento com as compras feitas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Stédile deve ainda apresentar os números por meio dos quais defende o movimento e pressiona o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele mesmo já advertiu que o petista será cobrado se ficar “lerdo e medroso”.
No começo do ano, o sem-terra disse que o movimento teria autonomia em relação ao governo para criticá-lo. E justificou-se: “Nós ajudamos a eleger, então, ele é o nosso governo”. Naquele momento, o MST havia retomado as invasões de terra no País, em áreas de Pernambuco e da Bahia. Semanas depois, o chefe do grupo recebeu, na feira promovida pelo MST em São Paulo, o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin.
A estratégia de se vincular ao governo não deve, no entanto, impedir que o relatório da CPI proponha indiciar lideranças envolvidas em invasões de terras. O texto que está sendo preparado pelo deputado Ricardo Salles, relator da CPI, deve atingir ainda uma dezena de políticos do PT e do PSOL, como forma de ligar a administração de Lula com o grupo – eles teriam recebido apoio financeiro e político do movimento.
Autor ou organizador de 12 livros versando sobre a reforma agrária no Brasil e no mundo, a principal liderança do MST no país, Stédile, de 69 anos, se tornou conhecido como o criador do “abril vermelho”, a onda de invasões que o MST promove anualmente no País e que, este ano, causou grande estresse ao governo Lula, aliado do movimento.
Foi em 2004, em Campo Grande, diante de uma plateia de militantes, que Stédile convocou os sem-terra de todo o país para “infernizar” os latifundiários. “Em abril, vamos pintar o Brasil de vermelho”, disse, numa referência à cor predominante na bandeira do MST.
Mais tarde, diante da repercussão que o levou a ser convocado para depor em uma CPI do Senado, ele disse que falou em sentido figurado. “Não significa uma onda de invasões, mas protestos por mudanças no modelo econômico adotado no país.” O “abril vermelho” foi incorporado pelo MST como uma jornada de mobilizações para homenagear os 19 trabalhadores rurais mortos por policiais militares em Eldorado dos Carajás, em abril de 1996.
Do Stédile da época só mudaram os cabelos, agora muito brancos. De tênis, calça jeans e camisa de algodão lisa ou xadrez, ele continua fiel às raízes gaúchas – nasceu em Lagoa Vermelha, no dia do Natal de 1953 – e à origem familiar: seus avós eram pequenos produtores rurais na Província de Trento, no norte da Itália. Na juventude, participou da organização de sindicatos de trabalhadores rurais em sua região.
Depois de se formar em economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e fazer pós-graduação no México, tornou-se uma referência intelectual para o MST. Em 2006, em visita ao bispo dom Pedro Casaldáliga, em São Félix do Araguaia (MT), ele contou que, na infância, queria estudar para ser padre, como era um desejo de sua mãe, mas não entrou para o seminário porque precisava trabalhar e ajudar a família.
Ainda jovem, Stédile passou a assessorar a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, e mobilizar trabalhadores para a reforma agrária. Em 1984, ele participou da fundação do MST. Se, no início do movimento Stédile não tolerava o envolvimento dos sem-terra com a política, esse direcionamento mudou na campanha de 1998, quando o candidato do PT, Lula, tentava impedir um segundo mandato do tucano Fernando Henrique Cardoso.