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Desigualdade

Pilares para a educação em 2024 

A diversidade emerge como um grande desafio para o desenvolvimento de uma educação de qualidade e com equidade, especialmente sem o desenho de um sistema que articule as diferentes necessidades e oportunidades de municípios, de estados e da União.

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09 de janeiro de 2024
Pilares para a educação em 2024 
Foto: Divulgação

Quando o escritor Leo Tolstoi, em 1873, completou o rascunho do que seria o romance Anna Karenina, não ficou satisfeito e parou. Faltava algo. Registros do autor revelam que a necessidade de dez mil rublos e uma proposta do jornal Russian Herald para a novela ser publicada em episódios o fizeram retomar o trabalho dois anos depois. No entanto, tinha a certeza de que para a história funcionar seria preciso “construir um pilar”. Foi assim que o personagem Konstantin Levin surgiu, com sua busca pelo sentido da vida se desenrolando em paralelo à tragédia vivida por Anna.  Quem conhece a história de Anna, mas não leu o livro, talvez não conheça a centralidade de Levin. Mas, graças a ele – o andaime que Tolstoi buscava – o mundo ganhou um clássico. 

A chegada de 2024 é um ensejo para pensarmos: quais pilares nos faltam na educação básica? Tanto para as políticas a serem implementadas, como as que ainda estão por vir, há um “personagem” que precisa estar presente: o Sistema Nacional de Educação (SNE), aprovado em 2019 por meio do Projeto de Lei Complementar (PLC 235). A centralidade da iniciativa reside na constatação de que, no Brasil, convivemos com elementos e realidades culturais, sociais, econômicas e geográficas muito distintas. Toda essa diversidade emerge como um grande desafio para o desenvolvimento de uma educação de qualidade e com equidade, especialmente sem o desenho de um sistema que articule as diferentes necessidades e oportunidades de municípios, de estados e da União. 

A efetivação desse pilar representa a urgente aprovação e implementação do SNE, garantindo, dessa forma, a instauração de uma rede de colaboração entre os diversos níveis de governo. A proposta é vista como arma poderosa para enfrentar as muitas desigualdades educacionais evidenciadas tanto nos recursos disponíveis para as instituições de ensino como nos resultados de aprendizagem das regiões do país.

Sem dúvida, viveremos agendas importantes para o país, a começar pelo monitoramento da implementação de políticas nacionais recém-lançadas, como o programa Escola em Tempo Integral. Também será o ano de outras serem finalmente construídas, como a do fortalecimento dos Anos Finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano), etapa estratégica em nossa formação, mas historicamente esquecida.  

Não há como fechar os olhos para a complexidade de qualquer implementação nacional em nosso país de dimensões continentais e organização federativa, com 26 Estados, o Distrito Federal e 5.565 municípios, cada um com autonomia na gestão das suas escolas. Por isso, a aprovação da lei complementar que regulamenta o SNE pode ser a estrutura necessária para os avanços em 2024.

No entanto, terminamos o ano sem a regulamentação do SNE. Dois substitutivos aguardam andamento na Câmara dos Deputados, sem previsão de andamento. É verdade que 2023 foi marcado por um Ministério da Educação de volta ao seu papel de coordenador, em diálogo permanente com estados e municípios, universidades e sociedade civil.

Mas, essa forma de construção se deu graças à visão republicana de quem está no poder.  Quando os governos mudam – faz parte do jogo democrático – o que permanece? Não foi à toa que o Sistema Nacional de Educação entrou como meta do ainda vigente Plano Nacional de Educação. 

Um bom exemplo dessa centralidade é o caso da expansão da educação integral, cujo acompanhamento precisa olhar a oferta a partir de critérios como etapa, região, perfil de rede e de escola. Será fundamental a coordenação entre o que as redes estadual e municipal farão em um mesmo território. Por exemplo, sem o planejamento necessário, há riscos no nível local, como o de escolas municipais se encontrarem superlotadas no Fundamental caso a rede estadual decida expandir o Ensino Médio em escolas estaduais que até então dividiam os turnos com o Fundamental. 

Parece algo simples de ser evitado, mas faz parte desse quebra-cabeça, quando consideramos que 72% das escolas estaduais têm no mesmo prédio turmas de Ensino Médio e de Ensino Fundamental. No caso das municipais, 55% dividem Anos Finais com Educação Infantil e 85% com Anos Iniciais. No nível local, mexer em uma etapa para ampliar o tempo e as oportunidades de aprendizagem significa causar impactos nas demais etapas.

Seja na alocação de professores, na organização das escolas, nas transições entre etapas e na efetivação dos currículos, como se darão essas negociações e pactuações no dia a dia das tomadas de decisão? Como os municípios que mais precisam de recursos e apoio técnico conseguirão, de fato, ofertar com qualidade a tão esperada expansão da educação integral?  

Outro exemplo do potencial do SNE está na anunciada construção da política nacional por uma escola das adolescências, que olhe, finalmente, para o fortalecimento dos Anos Finais do Fundamental (6º ao 9º ano). Especificamente nessa etapa, a responsabilidade compartilhada entre estados e municípios leva a múltiplas configurações de oferta, fazendo com que algumas redes tenham quase metade das matrículas sob responsabilidade do estado, enquanto outras têm praticamente quase todas com os municípios. 

Ainda que não seja necessariamente negativo ter diferentes modelos, a falta de uma definição normativa construída em colaboração entre estados e municípios acarreta diversos problemas que prejudicam a gestão das redes e a própria trajetória escolar dos estudantes.

No caso dos Anos Finais, a ausência de coordenação afeta, inclusive, a possibilidade de escolas, currículos e profissionais mais especializados para essa etapa dos 11 aos 15 anos. Sem a efetivação de um regime de colaboração entre os entes federativos, falta um pacto de corresponsabilização, prejudicando, especialmente, os municípios mais frágeis. 

O grupo de trabalho interfederativo criado pelo Ministério da Educação para estruturar uma proposta de política para os Anos Finais é um passo importante na solução desse grande quebra-cabeças. Com um Sistema Nacional de Educação em funcionamento, uma política tão estratégica poderá contar com instâncias, processos e padrões para negociações e pactuações necessárias em um país profundamente desigual como o nosso. 

No romance de Tolstoi, os personagens Konstantin Levin e Anna Karenina praticamente não se encontram e, de fato, o clássico ficou mais conhecido pela personagem que dá o título ao clássico. Entretanto, sem Levin não haveria Karenina, e o seu criador não teria nos dado uma obra profundamente filosófica. Felizmente, o escritor russo encontrou seu andaime. Que em 2024, o Sistema Nacional de Educação, finalmente, aprofunde raízes, para que se concretizem conquistas importantes, como a ampliação da educação integral e a criação de uma escola das adolescências. 

Patricia Mota Guedes – Superintendente do Itaú Social, graduada em Ciências Políticas pela Universidade do Arizona do Norte, mestre em Administração Pública pela Universidade de Massachusetts Amherst e em Políticas Públicas pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos