A ministra da Saúde, Nísia Trindade, citou eventos climáticos do fim de 2023 para justificar uma regra baixada pelo Ministério da Saúde em maio daquele ano para ampliar repasses de verbas a estados e municípios. Ao alegar a necessidade de “assistência financeira emergencial”, a Portaria 544 de 2023 permitiu ao ministério ignorar critérios técnicos da própria pasta.
Atendendo a pedidos de congressistas e do ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais), o ministério fez repasses acima do limite a dezenas de prefeituras. A ministra citou “secas no Norte” e “enchentes na região Sul” como emergências, mas o Estado mais beneficiado foi Alagoas, terra do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP).
Nísia prestou essas explicações na Comissão de Saúde da Câmara, na manhã de quarta-feira, 10, respondendo a uma pergunta da deputada Adriana Ventura (Novo-SP). Além da Portaria 544, Nísia Trindade também foi questionada sobre a queda nos gastos com campanhas de divulgação contra a dengue em 2023; sobre as férias da secretária de Vigilância do ministério, Ethel Maciel, em janeiro; e sobre os repasses acima do limite para o município de Cabo Frio (RJ), onde seu filho é secretário de Cultura. Ela estava acompanhada do secretário-executivo do ministério, Swedenberger Barbosa.
A Portaria 544 de 2023 foi editada pelo Ministério da Saúde em maio de 2023, para disciplinar a destinação de verbas do antigo esquema do orçamento secreto, proibido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no fim de 2022. Inicialmente, eram cerca de R$ 3 bilhões, mas, ao longo de 2023, mais recursos foram repassados seguindo as regras da Portaria 544.
As verbas repassadas segundo regras da Portaria 544 permitiram ao ministério ignorar o limite máximo de verbas para atendimentos de média e alta complexidade que cada município tinha capacidade para empregar, chamado de “Teto MAC”. Em 20 deles, esse teto foi superado em mais de 1.000%.
Na prática, as prefeituras receberam muito mais dinheiro do que a capacidade para entregar esses serviços. Enquanto isso, outros 1.332 municípios que pediram recursos da mesma portaria não levaram nada. Os maiores beneficiados foram o governo de Alagoas (R$ 166,5 milhões), o governo do Maranhão (R$ 132 milhões) e a prefeitura de Maceió (R$ 103 milhões), reduto do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Só depois aparecem cidades como São Paulo, Teresina e Curitiba.
“Muitos repasses têm sido feitos sem atenção ao teto MAC. Existe uma coisa que é uma situação emergencial, como a estabelecida pela Portaria 544 (…), que autorizou repasses sem respeitar o teto MAC. A minha pergunta é: quais são os critérios utilizados para caracterizar uma assistência financeira como emergencial? Não está claro para mim por que isto é emergencial”, perguntou Adriana Ventura, que é integrante titular da Comissão de Saúde. “Eu vi município que podia receber 50, e recebeu 150. Teve outro que o Teto MAC era R$ 40 milhões, e recebeu R$ 100 milhões. Quero entender o critério e o que é emergência”, questionou ela.
“A Portaria 544 foi uma decorrência de retorno aos ministérios ( ..), inicialmente de R$ 3 bilhões que eram das emendas de relator. Nós adotamos critérios através dessa portaria, amplamente divulgados, para que os municípios pleitearem (sic) esses recursos. Como situações emergenciais (a justificar o não cumprimento do teto), destaco aqui situações como inundações na região Sul (em novembro), seca na região Norte (outubro), de desassistência vivida em muitos municípios”, respondeu Nísia Trindade, sem dar maiores detalhes.
“Como bem colocou a deputada (Adriana Ventura), os recursos de média e alta complexidade têm critérios muito claros, que tem à ver com o tamanho populacional, com a rede assistencial. Em muitos casos são feitas visitas técnicas. Nós iniciamos uma correção, é bom que se diga. Há muitas distorções no Brasil. Se formos olhar o que tem de ‘Teto MAC’ para os Estados do Pará e da Bahia, nós vamos ver uma grande defasagem em relação aos investimentos feitos. Ainda que tenhamos critérios técnicos, houve anos de desmonte. De não atendimento a demandas”, disse.
Em Goiás, os 1.744 habitantes de São João da Paraúna contam com apenas um posto de saúde e nenhum hospital, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde. O município declarou ter feito 28 mil procedimentos de média e alta complexidade em 2023, incluindo 4 mil exames de urina. A prefeitura recebeu, em novembro, R$ 1,25 milhão para bancar procedimentos de alta e média complexidade por meio da portaria. Rio Verde (GO), por outro lado, com 225,7 mil moradores e uma produção que superou 2 milhões de procedimentos especializados em 2023, pediu R$ 126,7 milhões por meio da mesma portaria para bancar os serviços, mas não recebeu nada.
O valor repassado para São João da Paraúna representa 4.758% do limite autorizado pelo Ministério da Saúde para alta e média complexidade no município em 2023, que era de R$ 26.271,24. Como o dinheiro foi classificado como emergencial, atropelou esse teto. A parcela supera tudo que a administração municipal gastou com assistência hospitalar e ambulatorial em 2023 (R$ 187 mil) e também tudo que o município planejou gastar com esses serviços no orçamento de 2024 (R$ 452 mil).
Deputados da oposição também questionaram Nísia Trindade sobre outros temas que têm sido fonte de desgaste para ela, como a epidemia de dengue, a crise envolvendo o povo indígena Ianomâmi, em Roraima e até as férias da secretária de Vigilância do Ministério da Saúde, Ethel Maciel. Como mostrou o Estadão, Ethel passou o mês de janeiro em férias autorizadas por Nísia, dias depois de assinar uma nota técnica alertando para o risco de uma epidemia histórica de dengue este ano.
“Terceiro, ministra, (gostaria de saber) se é adequado a secretária (Ethel Maciel) tirar férias, ela passar as férias na meditação na Índia, enquanto a população sangra?”, perguntou a deputada Rosângela Moro (União Brasil-SP).
O deputado Luiz Lima (PL-RJ) mencionou o aumento no gasto com publicidade estatal em 2023, enquanto o valor despendido com as campanhas de combate à dengue diminuíu. “Em 2022, os gastos com campanhas de esclarecimento sobre a dengue foram de R$ 31 milhões, mas em 2023, caíram para R$ 12 milhões. Uma diminuição de mais de 70%”, disse ele. Vários congressistas também questionaram a ministra sobre os repasses da pasta para Cabo Frio (RJ), onde o filho dela se tornou secretário de Cultura.
Sobre a queda nos recursos para as campanhas contra a dengue, a ministra dise que a notícia era “falsa”, sem, no entanto, contrapor os números. “Em relação aos custos da campanha (de publicidade contra a dengue), a notícia noticiada é falsa. Nós contestamos imediatamente. Os valores destinados à campanha de publicidade para a dengue em 2024 são maiores, R$ 50 milhões, que os R$ 32 milhões do período de 2022”, disse, sem tratar dos gastos em 2023, quando houve a queda.
A respeito de Cabo Frio, Nísia Trindade disse que os repasses foram feitos “de forma republicana, seguindo as diretrizes técnicas das nossas áreas específicas”.
“Nada há de diferente, de extraordinário em relação a Cabo Frio, apenas o fato do município ter ficado desassistido, ter aumentado sua rede e não ter contado com o apoio do governo federal como era devido. Era uma reivindicação antiga no Ministério”, disse a ministra.