Dos cerca de 2,5 mil pacientes que implantam um stent cardíaco todos os anos no Instituto do Coração (InCor) de São Paulo, seu Raimundo, de 70 anos, representará um marco agora. Não porque ele tenha uma condição rara ou um quadro mais complexo.
Na verdade, o tratamento de pacientes com quadros como o dele – idosos com hipertensão e colesterol alto – faz parte da rotina diária. O que tornou o caso de seu Raimundo Aparecido Victor singular foi ele ter sido o primeiro paciente na América do Sul a passar por uma angioplastia com o auxílio de inteligência artificial.
O procedimento foi feito pela equipe de cardiologia intervencionista do InCor na manhã de quinta-feira. A angioplastia é um procedimento minimamente invasivo para desobstruir artérias coronárias entupidas (geralmente por placas de gordura ou calcificações).
Nela, a equipe médica insere, por meio do braço ou da virilha do paciente, um cateter que chega ao vaso cardíaco obstruído, possibilitando a colocação de um stent, um componente metálico parecido com uma pequena mola que, após inserido, é expandido por meio de um balão operado pelos médicos, abrindo passagem para a circulação sanguínea e reduzindo o risco de problemas cardiovasculares.
Na maioria dos hospitais do País, a equipe usa um equipamento de raio X para visualizar os pontos de obstrução e guiar a implantação do stent. Em alguns centros especializados, como o InCor, os médicos têm à disposição também um aparelho que consegue visualizar o interior do vaso com resolução similar à de um microscópio, método chamado de tomografia de coerência óptica.
O que a inteligência artificial faz é analisar as duas imagens conjuntamente e oferecer informações mais precisas. “Esse algoritmo faz uma fusão das imagens de raio X e da tomografia e identifica os locais de maior gravidade da obstrução, as características da placa, se há calcificações, as espessuras e o ângulo dessas calcificações, além de avaliar, depois da colocação do stent, se está corretamente expandido”, diz Carlos Campos, médico do Departamento de Cardiologia Intervencionista do InCor e um dos cardiologistas que realizou o procedimento.
O algoritmo funciona por meio do software Ultreon 1.0, desenvolvido pela farmacêutica americana Abbott e que recebeu registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro. A empresa fez uma parceria com o InCor para ofertar de forma gratuita a tecnologia ao centro médico com a contrapartida de que o instituto atuasse na formação de outros profissionais do Brasil e do exterior.
Os médicos contaram com a ajuda da inteligência artificial em três principais momentos. Primeiro, o algoritmo foi capaz de indicar os pontos específicos de calcificação das artérias. “Se o stent encontrar calcificações no caminho, pode não se expandir adequadamente. Como o software nos ajudou a identificá-las e estavam em pontos anteriores aos pontos de maior obstrução por gordura, entramos antes com um dispositivo que quebra essas calcificações para facilitar a posterior passagem do stent”, diz Campos.
Em seguida, o software calculou o melhor tamanho de stent de acordo com as obstruções identificadas – foram duas. E, após a colocação do dispositivo, o algoritmo identificou pontos onde o stent não estava expandido adequadamente dentro da artéria, possibilitando que os médicos corrigissem o problema.
“Se você implantar o stent com pressão muito elevada, você pode até romper o vaso. E se você faz uma subexpansão, a chance de voltar a doença e a angina (dor no peito) é maior. Então, após o implante do stent, nós voltamos a colher as imagens tomográficas dentro das artérias e, usando o algoritmo de inteligência artificial, conseguimos deixá-lo melhor expandido, o que melhora o fluxo sanguíneo e reduz a chance de o paciente voltar a ter uma obstrução naquele local”, afirma Alexandre Abizaid, diretor do Departamento de Cardiologia Intervencionista, que também fez parte da equipe que realizou o procedimento.
“O índice ideal de expansão é de 80% a 90% da artéria. Para os nossos olhos, o stent estava perfeito, mas a inteligência artificial foi capaz de identificar que, em alguns trechos, estava com 75% de expansão e, com isso, pudemos ir novamente com o balão naquele ponto e expandir o stent um pouco mais”, afirma Campos.
Os cardiologistas ressaltam que os médicos são capazes de fazer a identificação e análise das obstruções, mas que a inteligência artificial traz maior precisão. “Estudos mostram que a angioplastia feita com o auxílio da tomografia de coerência óptica e da inteligência artificial tem 30% menos risco de eventos como óbito, enfarte e necessidade de outra angioplastia, em comparação ao procedimento tradicional só com imagens de raio X”, diz Carlos Campos.
Para Roberto Kalil Filho, presidente do Conselho Diretor do InCor, a nova tecnologia, além de aprimorar o tratamento de pacientes com doença coronariana, traz ganhos para o sistema de saúde. “Quanto mais a inteligência artificial ajudar o médico, mais acurácia os métodos vão ter para o benefício do paciente. E qualquer procedimento ou avanço que você minimiza riscos e melhora o resultado vai ter impacto direto no sistema de saúde “
Ele afirma que o InCor já começou a treinar nesta quinta médicos de outros Estados do País na técnica. Especialistas da Argentina, Chile e Colômbia deverão passar por capacitação no InCor em abril.
Alexandre Abizaid afirma que a tecnologia usada na angioplastia deverá ser oferecida para pacientes de maior complexidade, o que representa cerca de 10% dos doentes que passam pelo procedimento no InCor. Isso porque, como ela não está na lista de procedimentos custeados pelo Ministério da Saúde, o hospital precisa subsidiar o custo do procedimento.