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Reservas superlotadas

Censo mostra desigualdade na distribuição de terras indígenas

Uma das constatações do levantamento foi que 51,25% dessas pessoas vivem na Amazônia Legal (região norte, Mato Grosso e parte do Maranhão).

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08 de agosto de 2023
Vinicius Palermo
Censo mostra desigualdade na distribuição de terras indígenas
Censo mostra que menos da metade dos indígenas estão distribuídos em várias regiões

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, na segunda-feira (7), os primeiros dados do Censo 2022 referentes à população indígena. Uma das constatações do levantamento foi que 51,25% dessas pessoas vivem na Amazônia Legal (região norte, Mato Grosso e parte do Maranhão).

Por outro lado, 48,75% dos indígenas, ou quase metade da população, vive em outras áreas do Brasil. “Ampliou-se consideravelmente o número de municípios com presença indígena registrada. Isso reforça o que os movimentos indígenas já vinham alertando há anos – os povos indígenas não são uma presença restrita à Amazônia, eles estão em todo o Brasil”, afirma o antropólogo Spensy Pimentel, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e autor do livro “O índio que mora na nossa cabeça – sobre as dificuldades para entender os povos indígenas”.

O estado da Bahia, por exemplo, concentra 229,1 mil indígenas. É o segundo estado com maior população indígena do país, concentrando 13,5% do total. Foi também o estado que teve o maior crescimento desse segmento populacional, entre todas as unidades da federação: 281%.

“É preciso, ainda, que entendamos que persistem desigualdades muito grandes no que tange ao acesso aos direitos por parte dessas populações. Enquanto na Amazonia estão disponíveis mais de 98% das terras indígenas do país, no restante do país, onde está quase metade da população indígena total, essas comunidades contam com somente 1,5% das terras e vivem, muitas vezes, em áreas urbanas ou reservas superlotadas. Há um déficit na demarcação das terras de povos como os guarani, os terena, ou os pataxó que precisa ser resolvido urgentemente”, explica o antropólogo.

Segundo ele, a morosidade na demarcação de terras indígenas no Centro-Sul e no Nordeste do país é um problema histórico que agrava a vulnerabilidade desses povos.

“Povos como os guarani-kaiowá, do Mato Grosso do Sul, e os avá guarani, do Paraná, passam, há décadas, por uma verdadeira crise humanitária, com altos índices de violência, suicídios, desnutrição infantil, desagregação familiar. O problema vem se arrastando e até hoje não temos um indicativo de como o país poderá resolver a situação. No sul da Bahia, essa morosidade nas demarcações também tem gerado violência e racismo contra as comunidades”, afirma.

Outro destaque, segundo o pesquisador, é a parcela da população indígena em relação ao total, em estados como o Amazonas (12,45%) e Roraima (15,29%). Segundo ele, no entanto, a participação desses povos na população não significa representação política.

“Em estados como o Amazonas ou Roraima os indígenas representam mais de 10% do total da população do estado, mas não têm garantida a devida representação política em Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores – algo precisa mudar urgentemente no país para que possamos superar esse problema”, explica.

Os dados do Censo, de acordo com Pimentel, ajudam no aprimoramento de políticas públicas voltadas aos povos indígenas e são as principais fontes de informação demográfica e socioeconômica sobre os indígenas que vivem no Brasil. E, nas últimas três décadas, o levantamento tem apresentado um aprimoramento em sua coleta e análise dessas informações.

Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ricardo Ventura Santos estuda a saúde e a demografia dos povos indígenas.

Segundo o IBGE, o primeiro censo foi realizado em 1872. Nesses mais de 150 anos, foi somente muito recentemente que se passou a coletar, de forma mais sistemática e contínua, dados acerca da população indígena. Desde 1991, o questionário passou a incluir de forma permanente a opção “indígena” no quesito cor/raça.

O antropólogo explica que o Brasil é um dos países do continente americano com menor proporção de indígenas na população e que isso tem relação com a coleta de dados censitários. A partir de 1991, segundo ele, se passa a ter uma visualização melhor do tamanho dessa população.

“É o quarto censo consecutivo que inclui a categoria indígena, no quesito cor ou raça. O que se observa, ao longo do tempo, é um aumento muito expressivo da população indígena ao longo dos censos, tendo ultrapassado 1 milhão neste último recenseamento, o que é um marco muito significativo”, destaca Santos.

Os dados do Censo de 2022 mostram que a população indígena no Brasil cresceu 89% em relação ao censo anterior, de 2010. A parcela de indígenas no total de habitantes no país passou de 0,47% para 0,83%.

“Esse crescimento não é unicamente demográfico. Há também um aumento relacionado a aspectos metodológicos e também a diferenças em relação ao autorreconhecimento. Possivelmente mais pessoas se reconheceram como indígenas em 2022”, afirma Santos. “Houve um aperfeiçoamento muito importante da coleta dos dados indígenas nos censos ao longo dessas décadas e precisaremos nos debruçar sobre os dados para compreender os fatores envolvidos nas mudanças demográficas”.

Os dados de 2022 mostram, por exemplo, uma população indígena de 71,7 mil indígenas em Manaus e de 229 mil na Bahia, mais do que se estimava anteriormente.

“Esse mais recente Censo, sem dúvida, foi capaz de captar muito mais pessoas indígenas, por exemplo, em Manaus, que é uma cidade no centro da Amazônia. Já se sabia de sua existência, mas estavam certamente ‘subnumerados’ em Manaus. Algo semelhante ocorreu em outras regiões do país. Houve um crescimento muito importante na Bahia, com 229 mil pessoas se declarando como indígenas”, explica Santos.

Para ele, o Censo se consolida como uma das principais, se não a principal, fonte de dados demográficos e socioeconômicos em da população indígena no Brasil. A divulgação desta segunda-feira é apenas a primeira, ainda deverão ser divulgadas informações relacionadas a etnias, línguas faladas, saneamento etc.

“Esses dados são absolutamente fundamentais para todas as políticas públicas e para indicadores de saúde, educação etc. No caso da covid-19, por exemplo, uma das grandes questões nos estudos sobre saúde dos povos indígenas relacionados à pandemia era justamente os denominadores, ou seja, o total da população, que estava muito desatualizado quando a pandemia aconteceu (2020, ou seja, dez anos depois do Censo anterior, feito em 2010)”, diz o antropólogo.

O pesquisador ressalta, por exemplo, a possibilidade de analisar os dados de mortalidade dos indígenas em relação ao restante da população e como essa informação pode ser relevante para as análises sobre desigualdades no país.

“Há um potencial de análise desses dados muito importante para você direcionar as políticas públicas em saúde. É importante enfatizar que há necessidade de todo um cuidado e cautela na análise dos dados censitários para os povos indígenas, em particular por suas especificidades socioculturais. Sabemos que a população indígena tem um perfil de saúde que é muito influenciado ainda pelas doenças infecciosas e parasitárias. A diarreia, por exemplo, é uma importante causa de adoecimento e morte nas comunidades indígenas. E isso está ligado às questões de saneamento. Os dados do Censo oferecem a possibilidade dessa análise para se compreender melhor os dados do campo da saúde”.

Além disso, segundo Santos, o Censo traz informações relevantes sobre os indígenas que vivem nas cidades.

“Uma dimensão muito importante do Censo é que ele traz uma sistematização dos dados das populações indígenas em contexto urbano. E não têm outra fonte, na verdade, além dos dados do IBGE. As outras fontes são mais setoriais em termos de cobertura dos territórios. A Funai e a Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, por exemplo, focam mais em territórios indígenas localizados em áreas rurais”.