Nos últimos dias testemunhamos mais um capítulo do embate entre Elon Musk e o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. A recente decisão referendada pelos demais membros do STF, que impõe uma multa diária de R$ 50.000,00 a qualquer pessoa física ou jurídica que tente acessar a rede social X (anteriormente Twitter) por meio de subterfúgios tecnológicos, como o uso de VPNs, gerou perplexidade no mundo jurídico.
Apesar de se tratar de mais uma decisão proferida nas controversas investigações sobre a disseminação de fake news e incitação a atos antidemocráticos, aqui temos a peculiaridade da imposição de multa para qualquer pessoa, mesmo que não seja investigada. Neste artigo, vamos analisar a validade dessa decisão no mundo jurídico e a sua efetividade no mundo real.
O conflito entre o STF e a plataforma X se intensificou após as manifestações de 8 de janeiro de 2023, com a invasão do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF. Em resposta, o ministro Alexandre de Moraes, relator de diversos inquéritos relacionados ao evento, ordenou o bloqueio de perfis na plataforma e, posteriormente, a suspensão do serviço no Brasil, devido à recusa da empresa em cumprir ordens judiciais.
A decisão teve como base legal o Marco Civil da Internet e o Código Civil Brasileiro. As leis brasileiras exigem que empresas estrangeiras que operam por aqui mantenham representantes legais no país e cumpram as leis locais. Segundo a decisão judicial, Elon Musk, proprietário da rede social X, ao encerrar as operações no Brasil, revelou sua tentativa deliberada de fugir da justiça brasileira, mantendo a plataforma como um canal para discursos extremistas e antidemocráticos, ameaçando as eleições de 2024.
É importante destacarmos que a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, mesmo referendada, foi objeto de uma ressalva feita pelo Ministro Luiz Fux. Ao analisar a imposição da multa, Fux concordou em parte com as decisões de Moraes, mas destacou que, embora fosse essencial garantir a aplicação das leis brasileiras, a decisão de Moraes não poderia afetar indiscriminadamente pessoas físicas e jurídicas que não estivessem diretamente envolvidas nas condutas investigadas. Luiz Fux ressaltou que o devido processo legal e o contraditório deveriam ser observados rigorosamente, salvo em casos em que ficasse claro que as pessoas ou empresas estavam utilizando a plataforma para fraudar a decisão judicial.
A ressalva apresentada pelo Ministro Fux é de grande importância. Afinal, a aplicação generalizada da multa evidencia a ausência de proporcionalidade e da especificidade das sanções. Uma medida tão ampla e pouco delimitada possa ultrapassar os limites do razoável, transformando-se em uma punição coletiva, contrária aos princípios básicos do direito penal e administrativo.
A multa também foi objeto de severas críticas no meio acadêmico. O jurista Rodrigo da Cunha destacou que não há base legal para a aplicação da multa a usuários individuais. Para ele, o ilícito, se existente, recai sobre a plataforma, e não sobre os usuários, que não podem ser penalizados por simplesmente acessar uma rede social. Essa distinção é fundamental no Direito, pois responsabilizar usuários por uma conduta que não é ilícita em si mesma contraria os princípios da legalidade e da proporcionalidade.
Além disso, a decisão de Moraes, ao fixar a multa de R$ 50.000,00 sem distinguir entre diferentes categorias de usuários ou avaliar a gravidade da conduta, ignora a necessidade de adequação e proporcionalidade das penas. Essa falta de critérios claros para a aplicação da multa reforça a caracterização da medida como teratológica, uma vez que decisões judiciais precisam ser fundamentadas, razoáveis e proporcionais ao ilícito supostamente cometido.
Embora a multa tenha um caráter coercitivo para garantir o cumprimento das ordens judiciais, ela jamais poderia ser imposta de maneira indiscriminada. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já admitiu a aplicação de multas coercitivas a terceiros, mas sempre com a condição de que esses terceiros sejam identificados e diretamente envolvidos no processo. No caso da decisão sobre o X, a generalidade da medida se torna extremamente grave, pois penaliza um número indeterminado de pessoas que não têm qualquer participação nas condutas ilícitas investigadas.
Notamos, portanto, que a falta de proporcionalidade na aplicação da multa é um dos pontos mais críticos da decisão. O valor uniforme e geral de R$ 50.000,00 por dia não considera a capacidade econômica dos diferentes indivíduos e empresas, criando uma situação em que a aplicação da pena pode ser injusta, arbitrária ou até mesmo irrisória.
Fux também abordou essa questão ao destacar que a aplicação de uma sanção tão severa a qualquer pessoa que utilize uma VPN para acessar a plataforma ultrapassa os limites do aceitável, colocando em risco a credibilidade das próprias decisões judiciais. Segundo ele, medidas como essa, ao invés de fortalecerem a autoridade do Judiciário, podem resultar em uma percepção pública de que as decisões judiciais são arbitrárias e desproporcionais.
A verdade é que a aplicação de uma medida tão ampla e severa contribui negativamente para a imagem já extremamente desgastada do Judiciário. A aplicação da multa se torna contraditória e questionável, enfraquecendo a autoridade da mais alta corte do país e ampliando a resistência da população, que vê na decisão um exemplo claro de excesso de poder.
Certo é que a multa diária imposta pelo STF é uma medida tão absurda quanto ineficaz. Embora a intenção seja garantir o cumprimento das ordens judiciais e proteger a ordem democrática, a medida é completamente desarrazoada, inclusive porque é impossível identificar e punir todos os usuários que acessarem o X durante a suspensão. Quer dizer, impossível não é — pelo menos uma conta que acessou o X após a decisão já foi identificada e pode ser multada: a do próprio STF, que, curiosamente, utilizou o X para divulgar a decisão de suspensão dessa mesma rede social.